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Entrevista

Copa 2014 e Olimpíadas 2016: um legado de mitos

Coryntho Baldez

Carlos FredericoEstá longe de ser unanimidade a ideia de que os megaeventos esportivos são capazes de inaugurar uma era de prosperidade nas cidades onde são realizados. Na verdade, em vez de desenvolvimento socioeconômico, eles estariam produzindo cidades desiguais, na avaliação de Adauto Cardoso, professor associado do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ.

O Rio de Janeiro seria a prova de que os investimentos para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016 vão deixar um legado muito mais para o capital do que para a população. O professor do Ippur diz que as cidades atuam, hoje, buscando valorizar os seus pontos fortes com o fim único de atrair grandes negócios. "Produzir justiça social e equilíbrio ambiental são objetivos subsidiários", sentencia.

Pesquisador do Observatório das Metrópoles, Adauto Cardoso apontou, nesta entrevista ao UFRJ Plural, alguns dos impactos sociais negativos derivados dos investimentos em curso no Rio de Janeiro. Entre eles, a expulsão da população de baixa renda de suas moradias e a apropriação privada dos fundos públicos - "o caso do Maracanã é exemplar", destaca.


UFRJ Plural - Os chamados megaeventos esportivos, de alguns anos para cá, sempre aparecem nos discursos oficiais como oportunidades únicas e imperdíveis para o desenvolvimento das cidades que os abrigam. Que modelo de cidade é esse que aposta todas as fichas em eventos desse tipo?
Adauto Cardoso - Essa é uma ideologia que começou a se desenvolver na Europa, principalmente nos anos 1980, depois da grande crise do petróleo. Uma das características da reestruturação econômica europeia era exatamente a ideia de que as cidades poderiam ter vantagens competitivas umas em relação às outras para disputar a atração de recursos do grande capital.

UFRJ Plural - É uma corrida meramente competitiva?
Adauto Cardoso - Toda uma concepção de planejamento territorial que se desenvolveu ao longo das décadas de 1950 e 1960, que via a necessidade de investimentos compensatórios em regiões menos desenvolvidas, vai por água abaixo. E o que se coloca então como prioridade é que as cidades e regiões têm que disputar umas com as outras, em vez de cooperar no sentido de que áreas desfavorecidas pudessem receber recursos para atingir o nível daquelas mais desenvolvidas.

UFRJ Plural - Isso impede um equilíbrio do desenvolvimento?
Adauto Cardoso - Sim, o que se faz é acentuar as diferenças, porque cada cidade quer correr atrás para melhorar as suas condições e atrair os investimentos.

UFRJ Plural - É uma concepção mais de cidade-negócio do que de cidade voltada para a cidadania?
Adauto Cardoso - Exatamente, é uma concepção muito voltada para que as cidades atuem como se fossem empresas. A forma mais acabada dessa ideologia é o planejamento estratégico das cidades, que hoje podemos chamar de gestão estratégica. A ideia central de toda concepção de planejamento estratégico empresarial é que a empresa deve atuar como se estivesse numa guerra, aproveitar as suas vantagens e procurar explorar as desvantagens dos seus adversários.

UFRJ Plural
- É essa concepção que passa a ser adotada no planejamento das cidades?
Adauto Cardoso
- Elas passam a atuar competindo umas com as outras, buscando valorizar os seus pontos fortes com o objetivo básico de gerar negócios e desenvolver o capitalismo naquele local. Qualquer ideia voltada para reduzir desigualdades sociais, resolver problemas ambientais, só existe em função de que isso possa atrair mais um negócio. Não existe um objetivo em si de produzir justiça social ou um equilíbrio ambiental. Esses são objetivos subsidiários ao objetivo central, que é desenvolver o capitalismo nessas cidades.

UFRJ Plural - No Brasil, a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016 estão justificando a aplicação de bilhões de reais em infraestrutura urbana e obras e reformas de estádios e complexos esportivos. Há transparência na aplicação desses recursos?
Adauto Cardoso - Em primeiro lugar, a partir da experiência de Barcelona, criou-se um mito de que atrair grandes eventos esportivos poderia significar uma reestruturação da economia das cidades que os realizassem. Então, o grande evento esportivo, especialmente a Olimpíada, que é o maior deles, seria a oportunidade para que essas cidades pudessem chegar a outro patamar na sua capacidade de atrair negócios.

UFRJ Plural - Essa ideia revelou-se um mito?
Adauto Cardoso - Sim, isso deu mais ou menos certo em Barcelona. Mas, em outras cidades, o que vemos é um legado de equipamentos que não funcionam mais e uma dívida absurda, já que os investimentos feitos não dão o retorno para pagar os custos das obras. Além do mais, desses grandes eventos resultam cidades muito mais desiguais do que antes. Olhando para o Rio de Janeiro, podemos perceber que o legado será muito mais para o capital do que para a população. Existem várias situações que revelam isso.

UFRJ Plural - Que tipo de situação?
Adauto Cardoso - Uma delas é a valorização imobiliária gerada a partir do anúncio que os Jogos Olímpicos seriam realizados no Rio. Somente isso já fez aumentar barbaramente o custo de vida para a população. Hoje, para realizar um evento do Ippur, não conseguimos mais hotel para alocar as pessoas. O custo da rede hoteleira no Rio é muito mais caro do que em qualquer outra cidade do país. Por isso, vale mais a pena fazer um evento fora do Rio.

UFRJ Plural - E a forma como os recursos vêm sendo aplicados? É transparente?
Adauto Cardoso - A forma como os recursos estão sendo aplicados é muito obscura. Dá para desconfiar da malversação desses recursos, dá para desconfiar que uma parte significativa deles possa estar sendo usada para outros fins, que não aqueles para os quais se destinaram. Obras sem licitação, com contratações que não obedecem aos critérios da legislação, não se justificam com o tempo que houve de planejamento e de preparação. Não houve na gestão das obras para os eventos esportivos um processo participativo. A sociedade foi completamente alijada dessa discussão. As decisões são tomadas em níveis superiores de governo, sem transparência, e numa articulação com empresas que me parece predatória para a população.

UFRJ Plural - Inicialmente, falou-se que todo o dinheiro para obras e construção de complexos esportivos viria da iniciativa privada. Não é isso o que está acontecendo e o Maracanã é um exemplo. O orçamento da reforma já está em quase um bilhão de reais e o novo estádio será administrado por empresas privadas, e não pelos clubes. Qual a sua avaliação sobre isso?
Adauto Cardoso - Por trás disso está a Parceria Público-Privada, uma das características desse modelo de planejamento estratégico, que se sustenta na ideia de que o Estado deve atuar como facilitador para o capital e que a empresa é muito mais eficiente quando se trata de gestão. Isso é um mito. Na verdade, pode ser ou não. O setor público pode ser mais eficaz do que a empresa. E a questão que tem que se colocar é qual o objetivo de determinada gestão. A empresa atua com um objetivo de administração que é o lucro. Então, a probabilidade é que esses espaços esportivos sejam muito mais elitizados a partir de uma gestão empresarial. O que a gente vê nessas Parcerias Público-Privadas é o fundo público financiando a acumulação privada. E o caso do Maracanã é exemplar.

UFRJ Plural - Por quê?
Adauto Cardoso - Em primeiro lugar, o Maracanã foi 'destombado' pela Prefeitura do Rio sem necessidade. A atual reforma tem um custo altíssimo. Era preferível construir um estádio novo e manter o tradicional Maracanã, que está no coração dos torcedores. Optou-se por uma reforma problemática, mas que é uma oportunidade muito mais para as empresas realizarem os seus ganhos. E ainda por cima vai se entregar a sua administração para uma gestão privada. Por isso, é um caso exemplar de fundo público financiando a acumulação privada. O objetivo social de se ter um estádio de futebol para a população ficou em segundo plano.

UFRJ Plural - Apesar da falta de informações dos governos, os Comitês Populares da Copa e dos Megaeventos estimam que cerca de 150 mil pessoas correm o risco de terem violados seus direitos à moradia por causa das transformações urbanas para a Copa do Mundo e as Olimpíadas no Brasil. Por que isso acontece?
Adauto Cardoso - É difícil avaliar quantitativamente. Existem os impactos diretos, resultantes dos deslocamentos para a realização das obras. Isso está acontecendo, por exemplo, com as desapropriações para a construção dos corredores expressos, os BRTs. Muitas pessoas estão sendo deslocadas para bairros distantes, com problemas de transporte. Recentemente, estive na banca de uma dissertação defendida na Coppe-UFRJ em que se fez uma avaliação do programa 'Minha Casa, Minha Vida' em relação à acessibilidade. O estudo mostra claramente os problemas de transporte que têm esses empreendimentos. E que os BRTs não vão resolver. Esses impactos diretos são mais quantificáveis.

UFRJ Plural - E quais são os impactos indiretos?
Adauto Cardoso - Esses derivam do enorme processo de valorização imobiliária gerado pelas obras relacionadas aos eventos esportivos. Essa valorização é apropriada privadamente. A partir da aprovação do Estatuto das Cidades, em 2001, esses investimentos poderiam ter sido feitos com a aplicação de determinados instrumentos jurídicos que permitiriam controlar os ganhos de valorização. E recuperar para o poder público uma parte desses recursos, o que permitiria que a população permanecesse em sua área de origem ou em locais próximos.

UFRJ Plural - O Estatuto das Cidades então não é utilizado pelo poder público?
Adauto Cardoso - Sim, há instrumentos jurídicos para controlar o processo de especulação imobiliária, mas a Prefeitura do Rio de Janeiro, desde a gestão de Cesar Maia, se recusa a utilizá-los. Ela trabalha no sentido de que os investimentos públicos gerem imediatamente benefícios para o capital. O nosso secretário municipal de Urbanismo representa os empresários da construção civil na cidade. Ele foi indicado pelo setor imobiliário para ocupar a Secretaria de Urbanismo. É como colocar a raposa para tomar conta do galinheiro. O que estamos vendo no Rio de Janeiro é o Estado perder a capacidade de regular a atuação do setor imobiliário.

UFRJ Plural - Essa expulsão de moradores se dá porque os investimentos enobrecem determinadas regiões, tornando mais cara a vida para os moradores de baixa renda?
Adauto Cardoso - Exatamente. Os investimentos têm a capacidade de gerar um processo de valorização dos bairros. Quando o poder público investe no transporte de uma área, pavimenta as ruas ou constrói equipamentos públicos, há uma melhora nas condições de vida naquela região. Na mesma hora em que se anunciam os investimentos, o preço da terra e dos imóveis já aumenta. E a tendência é que ele aumente continuamente. O que acontece? Quem mora de aluguel já não consegue pagar mais os reajustes pedidos pelos proprietários. E quem já mora ali recebe pressão para vender a sua moradia. Esses são fatores que geram um deslocamento populacional que temos dificuldade de medir porque os impactos são indiretos e vão acontecendo ao longo do tempo.

UFRJ Plural - E o caso da tradicional Vila Autódromo? A comunidade apresentou um plano técnico, com o apoio do Ippur, para evitar a remoção e garantir às famílias condições adequadas de moradia e urbanização. A prefeitura aceitará esse plano?
Adauto Cardoso - Essa é uma luta política em que o Ippur está engajado. Foi um grupo de pesquisadores e de estudantes que deu apoio técnico para a formulação do plano. A Vila Autódromo foi uma área que teve o seu processo de regularização fundiária. As famílias tiveram os títulos de propriedade concedidos pelo governo do Estado há muitos anos. Não se pode nem dizer que seja uma área irregular ou ilegal. Não é. A titularidade da terra para os moradores já foi reconhecida.

UFRJ Plural - E porque a Vila Autódromo está sempre na mira do poder público?
Adauto Cardoso - Porque aquela é uma área extremamente valorizada. Há diversos interesses por trás desta coação, como os da Carvalho Hosken, uma grande proprietária de terras da Barra que possui terrenos ao lado da Vila Autódromo, que é uma pedra no sapato da Carvalho Hosken há muitos anos. Desde os Jogos Pan-Americanos, houve tentativas malsucedidas de remoção da comunidade, inclusive com intimidações e ameaças. Mas os moradores resistiram e continuam a resistir. A Carvalho Hosken fez uma grande pressão para que muitos equipamentos esportivos fossem construídos naquela região, e isso pouco se discute. Se o objetivo era desenvolver a cidade, por que não se pensou na Região Metropolitana ou na Baixada Fluminense para construir grandes arenas para competição esportiva?

UFRJ Plural - Se isso acontecesse, essas regiões poderiam receber novos investimentos?
Adauto Cardoso - Poderiam receber investimentos de acessibilidade que teriam efeitos positivos sobre a qualidade de vida de moradores de menor poder aquisitivo. Mas, não. Esses investimentos foram para uma área bastante valorizada para que ela se valorizasse ainda mais, atendendo a interesses de corporações imobiliárias.

UFRJ Plural - Esses investimentos em transporte e mobilidade urbana estão sendo direcionados para os bairros considerados mais nobres?
Adauto Cardoso - Sim, e é importante frisar que esses investimentos já são complicados na origem, porque a solução mais adequada para o transporte de massa não é o ônibus, mas o trem. Além disso, temos várias soluções tecnológicas baratas e racionais para resolver o problema da mobilidade estrutural. O ônibus não é transporte estrutural. É para fazer as pequenas distâncias, ou seja, ligar os bairros às estações de transporte estrutural.

UFRJ Plural - E que soluções alternativas seriam essas?
Adauto Cardoso - Temos o metrô, os veículos leves sobre trilhos. A própria Coppe tem um protótipo de trem de levitação magnética, o Maglev, que poderia ser explorado. Existem várias alternativas tecnológicas que são muito melhores do que os BRTs para ampliar a capacidade de transporte.

UFRJ Plural - Por que não se adotam essas soluções mais racionais?
Adauto Cardoso - O que acontece é que as companhias de ônibus têm o monopólio sobre o transporte coletivo na cidade do Rio de Janeiro. E têm um poder impressionante sobre os governos. Elas controlam as Câmaras de Vereadores, a Assembleia Legislativa, controlam tudo. São essas empresas que vetaram o metrô, o trem, e obrigaram a Prefeitura a adotar os ônibus articulados, os BRTs. Eles são um pouco melhores do que o ônibus normal, mas não é a solução ideal. Pelo contrário, é uma solução precária, que respondeu ao interesse privado, e não ao interesse público.

UFRJ Plural - E quanto à localização desses investimentos?
Adauto Cardoso - Os percursos foram feitos para viabilizar o acesso aos equipamentos olímpicos, e não para melhorar a acessibilidade. Alguns bairros estão sendo beneficiados, como Jacarepaguá e, especialmente, a Barra da Tijuca, que tem uma população de alta renda. Os governos sempre tiveram o compromisso de resolver o problema de acessibilidade daquela região. A Zona Oeste continua deixada de lado, isso sem falar da Zona Norte e no resto da Região Metropolitana. Na verdade, o BRT vai melhorar o transporte na Barra, mas terá pouco impacto na melhoria da acessibilidade dos bairros da Zona Oeste, como Santa Cruz, Campo Grande, Bangu e Realengo.

UFRJ Plural - Por fim, qual tem sido o papel da universidade pública, particularmente da UFRJ, na discussão dos eventos esportivos que acontecerão na cidade do Rio de Janeiro?
Adauto Cardoso - Há unidades da UFRJ que têm se articulado com outras organizações da sociedade ligadas aos comitês populares da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Particularmente no Ippur, o Observatório das Metrópoles, onde trabalho, possui um grupo e acompanhamento desses grandes eventos, articulado nacionalmente com outros grupos de pesquisa em cidades que também estão recebendo investimentos relacionados a esses eventos. Estamos monitorando algumas questões importantes. Por exemplo, o professor Orlando Junior, do Observatório das Metrópoles, atua em conjunto com a professora da USP, Raquel Rolnik, que é relatora das Nações Unidas, fazendo o acompanhamento de violações ao direito à moradia. Temos também o Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (Ettern), coordenado pelo professor Carlos Vainer, que acompanha diretamente esses processos ligados aos investimentos para os grandes eventos esportivos. E ainda fizemos o plano alternativo da Vila Autódromo, que é uma tentativa de mostrar que existe outra solução técnica adequada para impedir a remoção. Queremos evitar que o argumento técnico seja usado politicamente para derrotar a luta histórica dos moradores da Vila Autódromo para permanecer em suas moradias.