UFRJ Plural - Universidade Federal do Rio de Janeiro

Entrevista

A hora e a vez da música nas escolas
Coryntho Baldez

Foto: Ana Liao André Cardoso, diretor da Escola de Música da UFRJ.

Apesar da rica tradição musical, o Brasil sempre teve uma experiência fragmentada na educação formal da arte milenar. A iniciativa oficial mais longa foi a adoção do canto orfeônico, a partir de 1931, como disciplina obrigatória nas escolas. Com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1971, o ensino da música ficou diluído dentro do novo e amplo conceito de educação artística.

 Em 2012, entrou em vigor a Lei 11.769/2008, que prevê a obrigatoriedade do ensino de música na educação básica. Fruto da mobilização de professores de música, músicos e entidades do setor, a nova legislação pretende romper a rigidez de grades curriculares tradicionalmente fechadas à dimensão cultural da música.

 “A luta, agora, é pela regulamentação da lei”, explica André Cardoso, diretor da Escola de Música (EM) da UFRJ e doutor em Musicologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Segundo ele, o novo modelo do ensino de música em escolas da rede básica será debatido no “I Encontro Internacional de Educação Musical”, que acontecerá nos dias 23 e 24 de maio, no Colégio Brasileiro de Altos Estudos (CBAE) da UFRJ.

 Entre os obstáculos para implantar a lei, além da inércia do Ministério da Educação, Cardoso aponta a diversidade musical do país e a falta de professores. “Como formar profissionais qualificados para atuar nas diversas regiões do país é um desafio enorme e será objeto de discussão no encontro”, afirma.

 Nesta entrevista ao UFRJ Plural, ele também aborda a relação do povo brasileiro com a música e os efeitos da indústria cultural sobre a percepção artística das pessoas.

UFRJ Plural – É possível entender o Brasil sem conhecer a relação do povo brasileiro com a música, ao longo da história?

André Cardoso – Talvez pudéssemos contar a própria história do Brasil através da música. Em muitos momentos importantes da nossa história, a música está presente. Quando D. João VI chega ao Brasil, vindo de Portugal, é recebido ao som de um Te Deum [hino litúrgico católico] executado por músicos dentro da então catedral do Rio de Janeiro. Quando D. Pedro I abdica do trono, por exemplo, um hino ao dia 7 de abril é composto por Francisco Manuel da Silva, o fundador da Escola de Música da UFRJ, que virou o Hino Nacional Brasileiro. Não existe povo sem música. A música é uma das manifestações artísticas que mais identificam os diferentes povos e culturas, mesmo no caso do brasileiro, cuja música é um amálgama extraordinário de múltiplas influências.

UFRJ Plural – Independentemente do ensino formal, a música faz parte da construção da identidade das nossas várias etnias. Como isso repercutiu na formação cultural e musical do país?

André Cardoso – É própria da formação do povo brasileiro a mistura de diferentes elementos culturais, principalmente o europeu e o africano, e também o indígena, em menor grau. Aqui, refiro-me especificamente à música. No século XXI, o que entendemos por música brasileira é algo muito difícil de definir. É uma música que recebeu, ao logo dos séculos, múltiplas influências. Então, o que reconhecemos como música brasileira, na verdade, é um grande caldeirão de influências musicais.

UFRJ Plural – Os autos do padre Anchieta, no Brasil Colônia, e o canto orfeônico de louvor à pátria e à harmonia social, já no século XX, mostram que o poder no Brasil, em muitos momentos, usou a educação musical como instrumento disciplinador e de controle ideológico. Qual a sua avaliação sobre isso?

André Cardoso – Essas relações de poder pontuam a história de qualquer povo. No início da colonização, a música foi um importante instrumento de evangelização, por exemplo. Muitas vezes, pelo obstáculo na língua, do não entendimento mútuo, a música foi utilizada como instrumento de aproximação entre os portugueses e os indígenas. Portanto, a música tem múltiplas funções, a estética, a política, a social, a educativa, enfim, ela pode ser usada de diferentes formas.

UFRJ Plural – No Estado Novo, a partir dos anos de 1930, o rádio deflagrou uma era de massificação e de legitimação de expressões musicais até então perseguidas, como o samba. Qual tem sido o papel da indústria cultural na formação musical das pessoas desde então?

André Cardoso – A indústria cultural é um fenômeno do início do século XX, desde a invenção do som gravado. Antes disso, quem quisesse ouvir música tinha que tocar ou ir a um concerto. A partir do advento do rádio, do fonógrafo, ou seja, dos meios que o homem encontrou para armazenar e difundir a música, aumentou o viés comercial por conta da massificação. A música, portanto, entrou numa grande rede de interesses comerciais. No século XX, ela explodiu como a manifestação artística mais acessível às pessoas no mundo inteiro, por conta dos LPs, do rádio, da televisão. E no mundo contemporâneo ainda mais, por conta dos meios digitais.

UFRJ Plural – E qual foi o impacto desse fenômeno?

André Cardoso – O que passa a determinar o gosto musical, muitas vezes, não é a qualidade da música em si, mas a capacidade de ela vender milhões de cópias. Os parâmetros mudaram. Assim, entender a importância de uma determinada música não diz mais respeito somente ao seu valor intrínseco, mas também ao ambiente em que se insere e como é usada. A indústria cultural, na verdade, mudou a maneira como as pessoas passaram a se relacionar com a música.

UFRJ Plural – E que tradição o Brasil tem na educação musical propriamente dita, tanto na rede formal como informal de ensino?

André Cardoso – Do ponto de vista oficial, a educação musical sempre viveu de espasmos, de iniciativas que duravam alguns anos ou décadas e depois eram abandonadas. Na verdade, existe toda uma rede de ensino musical, formal e informal, mas que não passava, necessariamente, pela inclusão da música como disciplina obrigatória nas escolas do ciclo básico, ao contrário de outras disciplinas. Em determinado momento, entendeu-se que era preciso fazer algo mais genérico, do ponto de vista da formação dos alunos. A música passou a ser mais um elemento entre outras expressões artísticas. Agora, há a compreensão de que a música precisa ter um tratamento diferenciado, porque é um elemento importantíssimo para a formação cidadã da criança e do jovem. É um momento importante para reafirmarmos o poder que a música tem de mudar a realidade.

UFRJ Plural – Talvez a experiência mais longa de ensino de música tenha sido o canto orfeônico, que durou de 1931, quando foi instituído como disciplina obrigatória por meio de decreto, até o fim da década de 1960. Qual foi o seu papel para o Brasil e a educação musical?

André Cardoso – Acho que foi importantíssimo. Foi o modelo que se considerou adequado naquele momento. Não necessariamente é um modelo que servirá para a sociedade brasileira no século XXI. Mas aquela experiência de canto orfeônico nas escolas formou inúmeras gerações de alunos. Alguns seguiram carreira musical, outros escolheram outras profissões, mas todos tiveram uma formação musical básica. Por que o canto orfeônico foi importante? Porque o canto é a educação musical mais básica, as pessoas já trazem consigo o seu instrumento, que é a voz. Não é preciso investir em compra de instrumentos, não há custos. Basta reunir meia dúzia de alunos e um professor bem formado e qualificado para transformar o canto em extraordinário instrumento de educação musical.

UFRJ Plural – Alguns apontam que esse modelo se baseou mais na cultura musical europeia, sem levar em conta formas populares e brasileiras. Esse foi um fator limitador?

André Cardoso – Mas o que é nosso? O que é música legitimamente brasileira? Eu não sei. A cultura brasileira é herdeira da cultura europeia. Isso é um preconceito às avessas. O samba não é mais legítimo do que uma sinfonia de Villa-Lobos. O ponto de partida é não termos preconceito de lado nenhum. Acho que conseguiremos ter uma educação musical democrática a partir do momento em que entendermos que qualquer manifestação musical é legítima. Dizer que música de concerto é de elite é uma bobagem. As manifestações populares que foram discriminadas, em determinado momento da história, estão inseridas hoje numa indústria cultural que produz muito lixo também. Então, temos que ter ouvidos e mentes abertos para que não corramos o risco de fazer uma discriminação às avessas. As crianças têm o direito ao acesso a todo tipo de manifestação musical, seja uma orquestra sinfônica, seja uma roda de samba.

UFRJ Plural – Com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1971 e o fim da experiência do canto orfeônico, o ensino da música acabou, de fato, diluído dentro do conceito mais amplo de educação artística?

André Cardoso – Sem dúvida. Na década de 1970, optou-se por um ensino mais genérico das artes, no qual a música estava inserida. Se, por um lado, pode-se pensar esse ensino como uma formação básica para as diferentes manifestações artísticas, ele levou também a um tipo de formação de professor generalista, que não era exatamente bem preparado em música, nem em artes plásticas ou teatro. Ele tinha uma formação superficial em todas essas áreas. Em determinado momento, a própria comunidade musical sentiu necessidade de que a formação do professor fosse um pouco mais especializada para que tivesse um resultado melhor. Daí começou a campanha para que houvesse o ensino obrigatório de música nas escolas.

UFRJ Plural – Fale um pouco sobre as raízes do movimento que resultou na Lei 11.769/2008, que prevê a obrigatoriedade do ensino de música no ensino básico em todas as escolas do país.

André Cardoso – O movimento começou com uma articulação feita por um grupo de músicos, que teve como uma de suas lideranças o Felipe Radicetti, compositor formado pela Escola de Música da UFRJ e atual presidente da Associação Brasileira de Compositores de Música para Audiovisual. Ele conseguiu articular diferentes setores, inclusive um grupo parlamentar, que foi importante para que a lei fosse formulada e aprovada no Congresso Nacional. Houve uma mobilização da classe, com o importante apoio de músicos e instituições, como o Sindicato dos Músicos, a Academia Brasileira de Música, as escolas de música das universidades. Essa lei aguarda a regulamentação, pela qual estamos agora lutando.

UFRJ Plural – E quais os preceitos mais importantes dessa lei?

André Cardoso – O importante é que ela torna obrigatório o ensino da música nas escolas. A regulamentação é que vai definir exatamente como a lei será aplicada e implementada. O “I Encontro Internacional de Educação Musical” pretende não apenas discutir as questões mais fundamentais do ensino da música nas escolas do Brasil inteiro como também a própria regulamentação da lei, que é fundamental.

UFRJ Plural – E quais são os principais obstáculos para a regulamentação aconteça?

André Cardoso – Primeiro, a inércia do Ministério da Educação em relação a essa regulamentação dentro do prazo estipulado pela própria lei. Em segundo lugar, a grande diversidade musical do país. O ensino musical para a criança no Rio de Janeiro e em São Paulo, certamente, não será o mesmo que o ensino no Tocantins ou no Rio Grande do Sul. Precisamos levar em consideração essa fantástica diversidade cultural e musical do Brasil. Isso tem implicações, inclusive, na própria formação dos professores. Como formar profissionais qualificados para atuar nas diversas regiões do país é um desafio enorme e será objeto de discussão no encontro.

UFRJ Plural – Mas como suprir essa demanda? As licenciaturas no Brasil são suficientes ou se está pensando em alternativas de educadores musicais que não tenham formação em cursos superiores de Música?

André Cardoso – Esse é um dos pontos principais da nossa agenda. Como fornecer educadores musicais para as escolas do Brasil inteiro. Os cursos de licenciatura cresceram bastante nos últimos anos, e não apenas por conta da lei, mas pela necessidade de universalização de acesso a essa educação especializada. Mas é um problema a ser discutido. Não se concebe, por exemplo, que em outras disciplinas não haja um professor formado naquela área do conhecimento. Não se coloca um professor de História para dar aula de Matemática, apesar de ele também ter uma licenciatura. Então, não dá para colocar no mesmo patamar um professor com licenciatura em Música e outro que mantém uma relação amadora com a música. Num primeiro momento, até podemos pensar no aproveitamento de educadores musicais sem formação específica, até que os cursos de licenciatura em Música cresçam e possam formar os profissionais que as escolas do Brasil vão precisar.

UFRJ Plural – E os resultados do “I Encontro Internacional de Educação Musical” serão encaminhados ao poder público?

André Cardoso – Teremos grupos de trabalho de profissionais da área da educação musical de vários lugares do Brasil, que já estão se preparando e discutindo uma série de questões. Essas pessoas vão se encontrar no Rio de Janeiro exatamente para formular propostas que serão submetidas à plenária final do encontro. Os documentos aprovados vão conter diretrizes para a regulamentação da lei e serão encaminhados ao Ministério da Educação e às Secretarias de Educação estaduais e municipais. Portanto, o evento abrigará discussão teórica, troca de experiências, mas também terá um caráter muito prático. Queremos colocar esse debate em pauta no Ministério da Educação e fazer a regulamentação da lei o mais brevemente possível.